Eu tinha cinco anos de idade e queria um animal de estimação, como a maioria das crianças. Nunca escutei as trezentas vezes em que minha mãe relutou, afirmando que daria trabalho. Alimentar, dar banho, limpar a sujeira… Eu queria arcar com tudo aquilo.
Sentada no chão do banheiro frio, deixando a água cair em seus pelos já cinza. Passei os dedos por seu tronquinho frágil, senti os ossinhos e, de repente, me vi consubstanciada à ela. Eu não sabia mais onde começava Luna e onde terminava a ponta dos meus pés. Eu era cauda, latido, mordida. Ela era choro, voz, cabelos e resistência. Eu estava fraca, porque sua ração estava intacta e a água só descia pela garganta em jatos de seringa. Eu estava fraca, com os olhos nevoados, tentando me fazer acreditar que sua cegueira não a impedia de enxergar que eu estava ali para ela. E que sua surdez seria capaz de fazer-lhe perceber, de alguma forma, que eu gritei que a amava.
Nunca conheci um cachorro tão resistente. Bebeu veneno e o mesmo se esvaiu de seu corpo como água, foi atacada por um cão três vezes maior que ela, amputou quatro dedos das patas e, ainda assim, tinha a ferocidade de fazer com que a vizinha precisasse levar pontos na mão – por uma leve abocanhada.
Uma bola de pelos pretos e olhos de jabuticaba que se acinzentaram. As patas brancas, como se sempre estivesse de meias calçadas, faziam o som característico da felicidade. E a personalidade forte, brava, indômita, que foi virando semente, virando flor, virando pétala e que murchou. Luna foi lua e eu a amei em cada fase, eu me fiz constelação e acompanhei suas peripécias.
A água do chuveiro misturava-se com o salgado dos meus olhos, não sentia mais odores, só as dores de um relógio quebrado. Quase dezessete anos, mas o carinho nunca foi “quase”. Meus dedos já eram suas costelas, meu rosto já era focinho, eu fui enfraquecendo, fui me debruçando, eu respirei, ela respirou, eu respirei, ela parou. Eu ainda ando pelo corredor, ainda tenho seu cobertor, suas fotos espalhadas misturam-se com as minhas. Ainda guardo sua imagem branda, um aperto no peito, uma porção de amor. Eu ainda ouço o som das suas patinhas.