A hora violeta

Eu odeio acordar tarde.

Por detrás da cortina, há um céu que nos engole. Que se esparrama roxo e quase escapa por entre meus dedos.

Eu odeio acordar tarde. O sol gritando em meus lençóis. O calor escaldando a minha pele, a pressa que me envolve por toda a espinha.

Eu odeio acordar tarde e esquecer que ainda é vida, ainda é sonho, ainda é doçura, ainda sou eu.

Eu odeio os ponteiros do relógio dançando pela sala, como se ainda houvesse no que me agarrar.

Eu odeio acordar tarde. Sem nada a esperar lá fora. Sem a ânsia de sentir todo o meu corpo se desvencilhar da trégua. Perder o céu invadir o meu quarto e se debruçar em minha cama. Mergulhar no roxo e na penumbra que ainda me lembram que sempre há tempo de acordar.

Contraponto

Receio ter que discordar do que outrora fez-me no centro do meu intento. Pretextos que se opuseram descaradamente ao conforto de saber onde apontar meu dedo trêmulo, pelas linhas duras que se acomodaram em cada uma das minhas circunvoluções cerebrais.

A luz faz-se fina e ardida pelos rasgos da cortina, eu tropeço nas curvas tortuosas das minhas lacunas, cerro os olhos e resmungo sei-lá-o-quê.

Proclamar com crueza me constrange, me agride, me escalda. E eu sinto tanto, tanto… Eu derramo tanto. Toco a ponta dos dedos em minhas serifas, as quais são meus ossos, pele, pelos e exaustão.

Eu queria me recolher em braços ninho, mas posso quase bebericar toda a intransigência. O espelho me embaralha entre dor e impaciência. Vestígios do que fui, excessos do que me tornei.

Corpo coletânea

Quero ser lida. Quero que devore minhas letras e me engula seco em cada soletrar. Quero estar na escrivaninha, na cabeceira. Quero estar, por acidente, entre seus lençóis, num anoitecer que escorrega sem marcar a página.


Eu quero anotações de post-it em meu corpo, quero debate nos fins de semana e ter meus textos contestados. Quero ser publicada, de mãos dadas, exposta nas ruas, livrarias e me debruçar de mão em mão. Quero que não quebre minhas orelhas, mas me leia e me ouça tanto quanto estou disposta a mudar de narrativa.

Eu quero parágrafos longos, dedos calmos, olhos afobados e diagramação embaralhada. Quero que desvende minha moral e sucumba aos meus devaneios. Interpretação inexata, mas cheia de sede.

Eu quero que me leia tendo a ciência de que minhas palavras tortas não findam, que eu tenho gosto de Mercúrio e só sei me ser em grandes mergulhos. Quero ser lida, mesmo com exagero de caracteres. Quero ser lida em voz alta, em sussurro e em olhos famintos.

Beijo

Às vezes, eu sou um poço que transborda medo. Às vezes é tão quieto em mim que não importa muito o que molha meus olhos, o que suja meus pés e o que parte minhas extremidades. Às vezes, eu queria ir tirando lembrança por lembrança, como quem tira bolinhas no sorteio do bingo. Queria ir tirando até não sobrar nada. Até que reste uma carcaça fora de órbita e sem plena capacidade de decidir se existe. Queria me tirar de mim até virar pó, em um último suspiro de alívio por ter gritado tanto a minha existência. Eu queria só fazer parte de uma micro partícula do ecossistema, que existe entre o que lhe foi ofertado e o que lhe foi designado. Às vezes, eu queria que os acordes gritassem e rangessem, talvez até mais do que a minha arcada dentária possa suportar e, só então, essa pele maltratada me arrastasse por mais uma encarnação. Queria ser devorada em escombros, queria ser todos os vermes que comem a minha carne. Queria ser a terra que me cobre e me frutifica entre dias ruins e dias deploráveis. Eu queria ser meu último suspiro de alívio e existir em cada microparcela desse tempo inventado, que escorre por minha boca e morre num beijo entre a vida e o que me restou.

Velório

Todos os vermes vestindo tua pele. Tuas antenas desfocadas derramam tuas cinzas. Deglutindo em sabores do asco que te enterra, travando na garganta que não traga tuas falácias.
Odores e dores de uma peçonha que tanto apanha quanto envergonha.
Não toque meu nome.
Não molhe meu telhado.
Quando eu passar, troque de lado.
No ímpeto da coragem, pus tua carne no caixão. A fraqueza pueril fertilizou a minha terra. A mulher quando aprende a se defender de homem, ela já venceu a guerra.

As flores

Você as tirou da terra, arrancou pela raiz.
Na súbita e mórbida avidez de se estender nas entranhas.
O aroma morte, o cinza maltrapilho da calça de moletom. A imensidão de possibilidades que existia nos teus olhos fundos de noites mal dormidas. As entranhas vis, as façanhas que quis, que fiz, a própria reabertura que sangra a cicatriz. As malas feitas as quais nem desfiz.
Você me tirou da terra, arrancou pela raiz.
E eu murchei, meu bem. Eu murchei.
Desidratada, seca, tórpida.
Em contubérnio com o mofo e as pétalas, as folhas e o talo.
Eu só tinha sede.
Muita sede.
Eu murchei e escorri pelo ralo.