Às vezes, eu sou um poço que transborda medo. Às vezes é tão quieto em mim que não importa muito o que molha meus olhos, o que suja meus pés e o que parte minhas extremidades. Às vezes, eu queria ir tirando lembrança por lembrança, como quem tira bolinhas no sorteio do bingo. Queria ir tirando até não sobrar nada. Até que reste uma carcaça fora de órbita e sem plena capacidade de decidir se existe. Queria me tirar de mim até virar pó, em um último suspiro de alívio por ter gritado tanto a minha existência. Eu queria só fazer parte de uma micro partícula do ecossistema, que existe entre o que lhe foi ofertado e o que lhe foi designado. Às vezes, eu queria que os acordes gritassem e rangessem, talvez até mais do que a minha arcada dentária possa suportar e, só então, essa pele maltratada me arrastasse por mais uma encarnação. Queria ser devorada em escombros, queria ser todos os vermes que comem a minha carne. Queria ser a terra que me cobre e me frutifica entre dias ruins e dias deploráveis. Eu queria ser meu último suspiro de alívio e existir em cada microparcela desse tempo inventado, que escorre por minha boca e morre num beijo entre a vida e o que me restou.